quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Caim - José Saramago

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Em mais um brilhante texto, Saramago conta-nos a história da vida de Caim, personagem bíblica amplamente conhecida por ter matado o seu irmão, Abel. Apesar de ser já uma história conhecida, senão por todos, pelo menos por alguns, Saramago consegue recontá-la, inventando diálogos, penetrando nos pensamentos das personagens e ironizando as situações mais dramáticas, daquela forma fantástica que lhe é peculiar e que torna a sua escrita ímpar.
O autor começa por nos apresentar os seus pais, Adão e Eva, e a sua vida no Jardim do Éden, onde estes desfrutam de uma vida simples e fácil, com abundância de água e de alimentos, apesar de não existirem grandes trabalhos a realizar nem grandes distracções, a não ser as esporádicas visitas do Senhor, que aparece normalmente vestido como um rei e ora fazendo-se anunciar com um grande estrondo de trovões ora aparecendo de mansinho.
Uma das poucas ordens que este lhes deu foi que não comessem os frutos da árvore do conhecimento, para que não soubessem o que era o bem e o mal. Contudo, Eva, por sugestão de uma serpente, acaba por colher um dos frutos e prová-lo, convencendo Adão a fazer o mesmo. Quando o Senhor descobriu ficou furioso e expulsou ambos do Jardim, ameaçando-os de que iriam certamente morrer á fome, à sede e ao frio, pois lá fora toda a terra era árida e a água e os abrigos escasseavam.
Uma vez no exterior, Eva e Adão confirmaram que as palavras do Senhor eram verdadeiras, pois embora tivessem encontrado uma caverna onde se abrigaram e um riacho quase seco, não vislumbraram uma única árvore de frutos, nem sequer um animal que pudessem matar e comer ou um terreno que pudessem tentar cultivar. Quando já estavam quase conformados de que iam morrer Eva tem a ideia de voltar ao Jardim e pedir ao querubim que o Senhor tinha colocado na entrada com ordem para os matar se eles tentassem entrar lá outra vez que os ajudasse, permitindo-lhes regressar ou dando-lhes alguns alimentos. Face á recusa pronta de Adão, Eva acabou por ir sozinha e, com muita insistência, conseguiu que o querubim lhes desse alguns alimentos. Compadecendo-se deles ou por outro motivo, mandou que, á noite, acendessem uma fogueira, que seria vista por caravanas que costumavam passar por ali e, certamente, iriam ajudá-los, dando-lhes trabalho e abrigo.
Graças a este querubim, que, como o escritor afirma, foi mais cristão que o seu Deus, puderam recomeçar a sua vida, estabelecendo-se numa aldeia e trabalhando como agricultores. Tiveram três filhos, entre eles Abel e Caim.
Apesar de os irmãos a princípio serem amigos inseparáveis, ao longo da sua juventude, a sua relação deteriorou-se. Quando queimavam animais para os oferecer ao Senhor, o fumo da fogueira de Abel subia direitinho em direcção ao Céu, prova de que Deus aceitava o seu sacrifício, enquanto o fumo da fogueira de Caim se dispersava a poucos metros do solo. Ao invés de consolar o irmão, Abel troçava dele, humilhando-o vezes sem conta, o que levou a que um dia Caim o atraísse para fora da aldeia e aí o matasse. Acto contínuo, o Senhor apareceu e censurou Caim, ameaçando-o de o condenar à morte. Caim acusou o Senhor de também ser culpado da morte de Abel, provocando a sua ira ao não aceitar as suas oferendas e tendo aparecido apenas depois de Abel estar morte, podendo impedir que este morresse se tivesse aparecido um pouco antes. Então, o Senhor condenou Caim a vaguear pelo mundo durante toda a sua vida, mandando-o abandonar a aldeia imediatamente.
Nesta permanente viagem, Caim atravessa não só locais, mas também vários tempos diferentes, peregrinando, de uma forma que escapa à nossa compreensão e à de ele próprio, através do passado e do futuro, ou, já que isto é tecnicamente impossível, através de vários presentes, passados em alturas diferentes. Vive um romance tórrido, quase chega a ser rei de uma pequena mas rica cidade e, sobretudo, espanta-se com as atitudes do senhor Deus, que muitos veneram, mas que Caim sabe ser capaz de uma crueldade quase gratuita, como ter ordenado a um pai que matasse o seu filho ou ter dizimado populações inteiras.
Esta foi uma obra que eu gostei de ler por vários motivos. Antes de mais, permitiu-me conhecer alguns aspectos do Velho Testamento que eu ouvia falar mas que desconhecia quase por completo. Além disso, é sempre um prazer ler Saramago e este livro não foge á regra. A sua linguagem irónica e divertida fez com que o lesse quase todo com um sorriso nos lábios. Por outro lado, a história, propriamente dita, de Caim é muito interessante e tem um final surpreendente, que eu adorei.
Numa perspectiva mais alargada, penso que este livro poderá ser uma alegoria do combate entre os fanáticos religiosos e os que contra as suas injustiças lutam, em que sempre há vítimas de ambas as partes e em que todos acabam por cometer erros que comprometem a vida de inocentes.
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Classificação: 5/6
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sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Ler em livrarias

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Normalmente as livrarias têm uns sofazinhos onde as pessoas se podem sentar e ler um pouco, antes ou em vez de comprarem os livros. Nem sempre as condições são propícias à leitura, mas é uma boa maneira de ler gratuitamente, principalmente livros pequenos, que se lêem em pouco tempo. Até porque são quase tão caros como os grandes, especialmente se são novidade, e proporcionam muito poucos momentos agradáveis.
Eu comecei a ler o livro “Caim”, de José Saramago, de que por acaso estou a gostar bastante, na Fnac e espero acabar em mais uma ou duas visitas a livrarias, para a semana. No princípio, não achei o espaço muito acolhedor. O sofá não passava de um banco almofadado encostado a uma parede e tinha o aparelho de ar condicionado, que fazia um ruído muito irritante, mesmo por cima, mas após algumas páginas envolvi-me de tal forma no livro que o ambiente à volta deixou de me perturbar.
E vocês, costumam ler em livrarias?
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Compras

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segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

As Intermitências da Morte - José Saramago

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Este é um livro maravilhosamente original. A história começa quando, num determinado país, após a passagem de ano, ninguém morre. No primeiro dia do ano o facto causa estranheza e, nos dias seguintes, quando se confirma, provoca a euforia da generalidade da população. Apesar de a imortalidade ser desde sempre um dos sonhos da espécie humana, o autor mostra-nos, desde logo, a preocupação e mesmo aflição que assaltou alguns grupos da sociedade.
O governo do país começou logo a prever os enormes problemas com que se veria a braços se a morte cessasse definitivamente a sua actividade. A Igreja entrou imediatamente em pânico, uma vez que era na morte que assentava todo o seu “negócio”: sem morte não haveria ressurreição nem medo de morrer e sem estes não haveria religião. Antecipou, assim, a perda da influência que detinha no país, pois, como Saramago colocou na boca do próprio cardeal, “A Igreja, parecendo governar o que está lá no alto, governa o que está cá em baixo”. Outros grupos que sobreviviam graças à morte não tardaram a apresentar os seus protestos ao governo, nomeadamente as agências funerárias e as seguradoras. A estas juntaram-se os hospitais e os lares, cujo funcionamento assentava na rotação entre os que morriam e os que chegavam. Não houve outra solução, para aliviar a sobrelotação destes, que enviar os doentes a quem já nada poderia ser feito nos hospitais, aqueles que estariam a morrer, se houvesse morte, para casa, para que as suas famílias cuidassem deles. Estes rapidamente se tornaram num transtorno imenso para os seus parentes e, ainda por cima, um transtorno eterno. Deste modo, as pessoas rapidamente perceberam que o facto de não haver morte não era tão bom como parecia no início. Esta situação levaria também à falência da Segurança Social, havendo uma multidão sempre crescente de idosos, que o trabalho dos mais jovens não conseguiria suportar muito tempo.
No entanto houve grupos que aproveitaram o caos reinante para tirar benefícios, como sempre tem havido nas situações dramáticas. Um deles foi o dos Republicanos (o país era uma Monarquia Constitucional) que utilizaram a situação para argumentarem que os contribuintes não poderiam sustentar uma multidão de reis que se iam sucedendo uns aos outros mas que nunca morriam. Outro destes grupos foi a máfia, que ofereceu os seus serviços às famílias para levar os seus doentes a morrer à fronteira, o que se tornou numa moda que a todos beneficiava.
Ao longo da obra acompanhamos também a personagem principal – a morte, isto é, uma das mortes. Esta surge-nos de múltiplas formas, nomeadamente na de um esqueleto coberto de um lençol preto e acompanhada de uma gadanha, como tem sido retratada inúmeras vezes. Apesar do seu poder ilimitado no que toca a dispor da vida humana, a morte apresenta emoções que a apresentam dos seres humanos.
Além de uma história interessante e muito curiosa, é uma reflexão acerca sobre o sentido da vida e da morte. Comporta ainda uma crítica social bastante vincada, ao pôr a descoberto as relações entre o poder político, a máfia e a Igreja, bem como a falta de valores que muitas famílias revelaram. Um dos aspectos que marca todo o texto e que me fascinou, a par da originalidade, foi a escrita genial a que Saramago nos habituou, a forma como inclui o leitor na obra e a ironia certeira de algumas passagens. Em suma, eu adorei este livro.
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Classificação: 5/6
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